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Envelhecimento Bem-Sucedido: Utopia, Realidade ou Possibilidade?

 

UMA ABORDAGEM TRANSDISCIPLINAR DA QUESTÃO COGNITIVA

Tania Guerreiro
Regina Rodrigues

 

Neste capítulo, seguindo o ponto de vista técnico metodológico que reconhece a gerontologia como um campo interdisciplinar que se constrói sem a intenção de reduzir as “ciências a um denominador comum, mas a partir da cooperação entre os conteúdos vivos, de modo a configurar uma nova totalidade” (Martins de Sá, 1998), tomaremos a liberdade de destacar conteúdos temáticos de interesses oriundos de áreas diversas, contribuindo para a elaboração de um quadro multidimensional que permita um melhor entendimento da cognição no envelhecimento humano.

Em que momento da história de nossas vidas, começamos a refletir sobre o envelhecimento e a finitude da vida?

Perplexos diante dessa realidade, confrontamo-nos com “novas-velhas” questões da existência humana. O que fazer para reencontrarmos o conforto que o véu da ilusão da imortalidade e juventude eterna nos proporcionava? Será possível encontrar algum sentido no viver/envelhecer?

Segundo Martin Grotjhan (apud Beauvoir, 1970), “nosso inconsciente ignora a velhice. Alimenta a ilusão da eterna “juventude”. Desse modo, surpreendemo-nos quando o outro nos identifica como o idoso, o velho. Existe, em princípio, um descompasso entre a visão que a pessoa tem de si mesma, que tende a se autoavaliar positivamente, a visão que ela tem dos seus companheiros de idade cronológica e a visão que estes possuem em relação a ela (Neri, 1991; Cnodder, 1995). A pessoa não percebe em si mesma as mudanças do envelhecimento; só as identifica no outro, quando, necessariamente, viver implica envelhecer.

De acordo com Carmen Secco (1997), “é pela rejeição da sociedade em relação a ele que o indivíduo começa a conceber-se como idoso”, isto é, a partir de uma construção social negativa, daquilo que ele já não mais é para o outro, daquilo que ele já não pode mais atender, ou ainda, daquilo que o outro e ele mesmo rejeitam para si, enquanto estereótipos negativos da velhice, que o indivíduo se percebe envelhecendo. A sociedade pode funcionar, assim, como um espelho cruel que busca impor uma imagem preconcebida, obrigando-o a olhar para o que não quer enxergar.

Numa sociedade em que o envelhecer distancia o indivíduo do ideal de homem concebido (Lima & Viegas, 1988), onde a busca do prazer é priorizada a qualquer custo, em que a dor, o sofrimento, devem ser rapidamente interrompidos, demandando intervenções imediatas (Illich, 1975), e em que o ideal de saúde perfeita é almejado, escamoteando nossas reais fragilidades (Sfez, 1996), a velhice é maldita.

O envelhecimento tem, sobretudo, uma dimensão existencial e, como todas as situações humanas, modifica a relação do homem com o tempo, com o mundo e com a sua própria história, revestindo-se não só de características biopsíquicas, como também sociais e culturais (Beauvoir, 1970).

Sabemos que o processo de envelhecimento está associado a uma maior suscetibilidade física e emocional. É certo que a expressão dessas suscetibilidades encontra-se na dependência da complexa interação de fatores físicos, psicológicos, sociais, econômicos e culturais, tornando o envelhecer, por um lado, um processo extremamente individualizado e, por outro, marcado pelos padrões socioculturais de uma época. Assim sendo, a maneira como o grupo social encara a velhice, como interpreta os adoecimentos e como lida com a perspectiva da morte interfere, sobremaneira, na vida de cada indivíduo em sua autoimagem, na relação consigo mesmo, na sua capacidade de construir seu próprio caminho, de se adaptar ao meio ou transformá-lo em seu benefício, e na sua relação com os outros, idosos ou não.

Tais considerações possibilitam delinear o terreno em que as mudanças biológicas ocorrem e entendê-las, não como uma força única, que se processa isoladamente, mas sujeitas também ao conjunto de forças que atuam na vida do homem. Assim, o envelhecimento perde a concepção reducionista em que o determinismo das perdas biológicas rege o conjunto de outros declínios e se apresenta como um processo interacional e multidimensional, que inclui transformações constantes que podem ser interpretadas simultaneamente como ganhos e perdas. Desse modo, redimensionando esse momento da existência no curso de nossas vidas, podemos descortinar um universo de potencialidades e possibilidades de transformações que são inerentes ao viver.

Pensar numa trajetória de envelhecimento bem-sucedido, leva-nos a refletir sobre o ideal de manutenção da autonomia, sobre a possibilidade de o indivíduo seguir o curso de sua vida, mantendo a concepção de sua identidade e de sua capacidade de interagir no mundo, fazendo opções ajustadas as suas necessidades, e reconhecendo que é também autor de uma história singular que está continuamente sendo construída e dá sentido à sua existência etc. Nesse contexto, a cognição1 assume um papel de relevância, entre outros aspectos importantes na manutenção da autonomia, fazendo da produção de conhecimento nessa área fonte valiosa de subsídios para o entendimento e melhor aproveitamento das potencialidades do ser humano.

Nos últimos anos, a pesquisa sobre o envelhecimento cognitivo se distanciou da estreita perspectiva de estudos sobre funções declinantes, vindo a se concentrar na concepção das potencialidades e dos limites (Baltes, 1994), enriquecendo-se com contribuições tanto da anatomia, da neurofisiologia, da genética, entre outras, como do enfoque proporcionado pelas ciências sociais.

 

Um Olhar para o Cérebro

Nosso cérebro pode ser compreendido como uma complexa rede neuronal (formada pela conexão de células nervosas, cerca de 100 bilhões ao nascimento), em que informações circulam sob a forma de impulsos eletroquímicos. Este órgão é o responsável pelo tratamento das informações oriundas do meio externo e do meio interno, a sede de nossos pensamentos, de nossas emoções, do comando de nossas ações, onde são processados os sentimentos mais sublimes e as ideias inovadoras que transformam o mundo em que vivemos.

Sabemos, hoje, que o desenvolvimento do cérebro continua mesmo após o nascimento e se orienta, no sentido de uma maior complexidade, não seguindo uma programação fechada, geneticamente determinada. O poder dos genes existe e garante a perpetuação de uma estrutura semelhante na mesma espécie, mas não explica as diferenças encontradas no nível mais íntimo dessa organização, entre gêmeos verdadeiros. No nível celular se estabelece o limite da ação dos genes, e nesse nível se faz presente o desenvolvimento epigenético que, por conta da plasticidade neuronal, “permite uma progressiva impregnação do tecido cerebral pelo ambiente físico e cultural” (Changeux, 1991). Essa capacidade plástica possibilita o desenvolvimento da rede neuronal em seus pormenores, promovendo a ampliação de conexões. Cada célula nervosa é capaz de se conectar com até 100 mil outras, sendo que o desenvolvimento dos circuitos depende de ativação neural para que estes sejam estabilizados.

O que torna esses processos [plásticos] especialmente interessantes é o fato de que eles são direcionados por atividade neural e, por conseguinte, são influenciados através de estimulação periférica, uma vez que todas as percepções do nosso corpo e do meio que nos rodeia são captadas e conduzidas ao neuro-eixo através dos sistemas dos sentidos (Annunciato, 1994).

Do ponto de vista evolutivo, o cérebro humano, segundo MacLean (apud Sanvito, 1991), apresenta em sua organização hierárquica a reprodução de três tipos básicos de cérebros, denominados “reptiliano”, “paleomamífero” e o “neomamífero”, intimamente associados, compondo um todo integrado:

a) o “cérebro reptiliano” detém importante participação na procriação, nos atos predatórios, no instinto de território e no modo de vida gregário, sendo a porção filogenética mais antiga e sua programação quase exclusivamente definida pela herança genética;

b) o “cérebro dos mamíferos inferiores” (paleomamífero) desempenha um papel relevante no comportamento emocional e permite algum grau de plasticidade no comportamento, não associada, contudo, a verbalização das ações e sentimentos;

c) o “cérebro dos mamíferos superiores” possibilita o desenvolvimento de operações lógicas e, expressa no homem atinge o máximo de sua evolução, culminando no domínio da linguagem.

A capacidade plástica possibilita ao homem aprender e aprimorar suas ações. O desenvolvimento de estratégias cognitivas proporciona ao homem uma enorme capacidade de adaptação ao meio e uma marcante superioridade sobre as demais espécies. Essa plasticidade está presente ao longo de todo o curso da vida.

 

Um Olhar Para a Mente

De acordo com Sanvito (1991), “a mente é uma entidade longamente construída e que vai se estruturando de modo a poder organizar significativamente a experiência”.

As funções psicológicas são produto da atividade cerebral, mas o ambiente social e as tradições culturais também determinam a natureza de cada pessoa.

Para Vygotsky (1998), as funções superiores da mente – atenção voluntária, memória lógica, formação de conceitos, pensamento, linguagem etc. – resultam de um processo dinâmico em que se destacam dois momentos: o que resulta do contato entre pessoas – interpsicológico, e o que acontece dentro do próprio indivíduo – intrapsicológico. Essa dinâmica, que Vygotsky inferiu a partir de seus estudos com crianças, estaria presente ao longo de toda a vida do homem.

Segundo Eccles, a mente autoconsciente, característica do ser humano, atua ativamente na organização de operações sutis e transcendentes, selecionando e integrando atividades cerebrais que podem ser expressas como produtos da mente a partir da instigação da própria mente sobre o cérebro.

Quando pensamos em alguma coisa, dizendo para nós mesmos que devemos lembrar disto ou daquilo, estamos atuando sobre o cérebro, de modo que os circuitos neuronais podem ser formados, o que possibilitará a recuperarão [da informação] em um estágio posterior (Eccles, 1992).

Do mesmo modo, quando pensamos em alguma coisa dizendo para nós mesmos que deveríamos lembrar, mas que não temos capacidade para isso, estamos atuando sobre o cérebro no sentido de facilitar uma mobilização neuronal ineficaz para a recuperação, porém ajustada a solicitação.

A nosso ver, “a memória é uma complexa função mental. Sua atividade se estende além dos limites da cognição, interagindo intimamente com outras funções superiores – afeto, motivação, criatividade – e básicas – ligadas a manutenção do equilíbrio orgânico. Dentro dessa perspectiva, a memória compõe a inteligência, a personalidade, a integridade de nossas células, a nossa evolução. Nela residem os elos de nossa construção pessoal, impregnados de afeto, dando sentido às nossas vidas” (Guerreiro et al., 1997).

Assim, os insucessos de memória, as dificuldades de aprendizagem, a ineficácia na criação de novas estratégias de pensamento, dentre outras situações presentes em qualquer etapa da vida, deverão ser interpretadas de uma perspectiva bastante ampla, à luz das intrincadas relações que permitem percebê-Ias imersas no universo singular da natureza humana; natureza esta em que emoção e razão se complementam compondo um todo; onde os sentimentos fornecem a base para a expressão plena da razão, devendo, portanto, ser reconhecidos, considerados, nunca excluídos (Damásio, 1998).

 

O Desafio do “Novo”

O ser humano, em qualquer idade, vive o drama da dualidade entre o impulso de se lançar num mundo novo e o conforto de se acomodar num universo já conhecido.

O novo, o desconhecido, se, por um lado, desperta a curiosidade, proporciona a aventura de descobertas e o prazer da liberdade, por outro, é gerador de dúvidas, incertezas e temores. Sentimo-nos mais frágeis sem o “domínio das regras do jogo”. A “perda do controle” nos assusta.

O mundo conhecido define uma zona de conforto em que nos sentimos donos da situação, tranquilos, fortes, possuidores de verdades. Esse sereno conforto, porém, pode nos levar a uma acomodação cristalizada.

Quando crianças, lidamos com esse conflito, abrandando nosso temor com a perspectiva do prazer. Deste modo, vamos, pouco a pouco, conquistando o mundo. A aprendizagem acontece entre as brincadeiras e as horas de dever, reforçando nossa confiança e ampliando nosso território de domínio, nossa zona de conforto.

Quando adultos, à medida que realizamos nossos sonhos, tendemos a ter mais reservas diante do desafio de nos envolver com o “novo”. Aprender sim, mas desde que não seja muito “ameaçador”. A zona de conforto torna-se cada vez mais sedutora, dificultando nossa saída para a conquista de novos territórios. Para muitos, o passar dos anos acaba definindo a situação. Ao dizermos não à aventura da aprendizagem, nós nos encastelamos num universo de conhecimentos e verdades e fechamo-nos para a vida. Desperdiçamos a oportunidade de um contínuo aprimoramento pessoal, na ilusão, ou justificativa, de que já não há mais o que aprender. Em consequência, restringimos as possibilidades de interação e deixamos de “alimentar” adequadamente com estímulos o nosso cérebro, favorecendo a rigidez do pensamento, a estreiteza da percepção e, por fim, a consolidação de um quadro de embotamento intelectual.

 

Um Olhar para o Social

As perspectivas do envelhecer favorecem o recrudescimento de inquietações que afligem o ser humano desde os primórdios de sua existência. Podemos encontrar, nas permanências culturais,2 elos de afinidades entre o homem de hoje e seus antepassados que, ao se verem diante da doença, da velhice e da morte, expressam as mesmas dores, as mesmas inquietações, os mesmos temores.

A velhice e a pior desgraça que pode acontecer a um homem (autor egípcio, citado por Vargas, 1994).

As permanências culturais atravessam as barreiras geográficas e as fronteiras do tempo. Desse modo, as palavras expressas por um egípcio há 2500 a.C. ecoam até hoje, parecendo-nos tão familiares.

As crenças e os mitos negativos sobre o envelhecimento atuam gerando expectativas desfavoráveis e, mais do que isso, podem se comportar como verdadeiras profecias direcionando o curso do uma história de vida e comprometendo o desempenho cognitivo de adultos idosos, como evidenciado em trabalhos de pesquisa (Levy & Langer, 1994).

A seguir, destacamos alguns dos mitos que se referem às capacidades cognitivas dos idosos:

1. Sabendo que, com o passar dos anos, perdemos neurônios e que essas células não se multiplicam, imaginamos o dia em que poucas restarão, comprometendo nosso raciocínio e memória;

2. O esquecimento é sempre sinal de que algo ruim está acontecendo em nosso cérebro, em nossa mente;

3. Com o envelhecimento, só podemos esperar o declínio de capacidades;

4. Para avaliarmos se nossa memória está normal, basta comparar nosso desempenho com o de outras pessoas;

5. O indivíduo idoso não é mais capaz de aprender coisas novas;

6. Quanto mais memorizamos, mais “gastamos” nossa capacidade. É preciso economizar, memorizando só o que for mais importante;

7. Nossa saúde intelectual no envelhecimento encontra-se na dependência do consumo de complementos vitamínicos e outras drogas que previnam a deterioração do cérebro.

 

Envelhecimento Bem-sucedido: Utopia, Realidade ou Possibilidade?

Todos nós almejamos as mais variadas formas de “viver bem”. Desejamos muito tempo de vida, e se o viver implica necessariamente envelhecer…será possível envelhecer mantendo nossas capacidades intelectuais e a autonomia necessária ao gerenciamento de nossas vidas?

Muitos estudos se voltam hoje para as potencialidades e limites no curso da vida, abrindo fronteiras que possibilitam o surgimento de modelos de envelhecimento bem-sucedido. Muito antes, porém, que a ciência se propusesse a tratar dessas questões, o homem diante de suas inquietações buscou respostas na teologia e na filosofia, encontrando em ambas importante espaço de reflexões sobre suas capacidades e o sentido de sua existência. Nas artes, pode retratar e vivenciar a experiência do envelhecer com toda sua riqueza e diversidade. Mas foi ao homem comum que coube a concretização dessas possibilidades, e, hoje, a observação dessas trajetórias é um dos caminhos pelos quais a ciência se propõe a entender e a tratar parâmetros para o envelhecimento bem-sucedido.

Em sintonia com o desafio do desenvolvimento de propostas de envelhecimento bem-sucedido, nosso intuito aqui será, num esforço de síntese, o de reunir contribuições oriundas de diversas áreas da ciência, sem a pretensão de delinear um modelo ou darmos conta da amplitude de questões que este tema suscita.

 

Quebrando Mitos

Desmitificar as generalizações sobre o desempenho cognitivo e global de adultos idosos parece-nos uma condição básica na busca do envelhecimento bem-sucedido. Abordaremos a seguir os mitos destacados anteriormente.

Mito 1: Sabendo que, com o passar dos anos, perdemos neurônios e que essas células não se multiplicam, imaginamos o dia em que poucas restarão, comprometendo nosso raciocínio e memória.

A perda neuronal ocorre ao longo de todo o desenvolvimento do sistema nervoso e é parte do próprio processo de organização do sistema, estando associada, inclusive, segundo Changeux (1991), ao processo de aprendizagem. As células nervosas quando atingem a etapa máxima de diferenciação não se multiplicam mais; desse modo, o patrimônio neuronal perdido não é renovado. A partir dos 30 anos, perdemos cerca de 100 mil neurônios a cada dia. Dos 30 aos 80 anos, tendo o indivíduo um estilo saudável de vida (sem excesso de bebida alcoólica, ausência de tabagismo, sem condições de estresse acentuado etc.), a perda é da ordem de 2 bilhões de neurônios. Nascemos com cerca de 100 bilhões de células nervosas e, portanto, contamos com um grande potencial neuronal excedente. De acordo com alguns estudiosos, utilizamos cerca de 10 a 20% do potencial cerebral e, se, por um lado, perdemos conexões neuronais estabelecidas, por outro, a capacidade de criação e estabilização de conexões sinápticas se mantém presente no curso de toda a vida, estando na dependência do exercício do intelecto para sua utilização. Desse modo, a perda que ocorre no envelhecimento fisiológico, não compromete por si só, o desempenho do adulto idoso (neste caso não estamos considerando doenças que atinjam o sistema nervoso).

Mito 2: O esquecimento é sempre um sinal de que algo ruim está acontecendo em nosso cérebro, em nossa mente.

O esquecimento é um mecanismo fisiológico de eliminação de informações irrelevantes, sem o qual sobrecarregaríamos o sistema desnecessariamente. Naturalmente, tendemos a eliminar os conteúdos que não tenham um importante significado afetivo ou que sejam pouco utilizados. Na verdade, esse processo de eliminação inicia-se na própria percepção, isto é, captamos mais facilmente aquilo que faz sentido em nossas vidas e deixamos de perceber muitas coisas que não se afinam com nossa estrutura de percepção (Eccles, 1992). Com frequência, atribuímos, equivocadamente, nossos insucessos a falhas de memória quando, na maioria das vezes, a informação foi mal percebida ou sequer registrada.

Mito 3: Com o envelhecimento, só podemos esperar o declínio de capacidades.

Como foi citado anteriormente, novos estudos se direcionam para o reconhecimento de capacidades que se mantém estáveis ou que se aprimoram ao longo do envelhecimento. Segundo Vargas (1994), “há maior capacidade de aprendizagem em situações práticas; maior habilidade e/ou capacidade de enfrentar trabalhos que requeiram paciência e precisão; sagacidade no manejo de experiências acumuladas e ampliação das relações já existentes; capacidade de compensação e estratégias mais aguçadas”. Algumas dessas características estão associadas à expressão de sabedoria nesse período da vida. No tocante à inteligência,3 se, por um lado, existe um declínio na inteligência mecânica (associada a fatores biológicos, genéticos e de saúde), a inteligência pragmática (associada a fatores socioculturais) se mantem estável, podendo, mesmo em idade avançada, expressar progresso. “De fato, por causa do poder intensificador e compensatório da pragmática cognitiva, esse progresso é possível mesmo na presença do declínio na mecânica cognitiva que resulta da idade” (Baltes, 1994). Se olharmos para os exemplos de adultos idosos que, no avançar da idade, dão continuidade e/ou expandem a sua produção intelectual e artística, poderemos entender a importância da conquista permanente de recursos ao longo de nossas vidas (inteligência pragmática) que, além de amenizarem a expressão das mudanças biológicas, permitem ao indivíduo viver o auge de sua produção.

Mito 4: Para avaliarmos se nossa memória está normal, basta comparar nosso desempenho com o de outras pessoas.

Nossas habilidades e capacidades são bem diferenciadas quando comparadas às de outras pessoas. Alguns possuem especial talento no campo da música, enquanto outros recordam-se facilmente de nomes. Uma mesma pessoa, em diferentes momentos de sua vida, apresenta desempenhos distintos, e isso pode acontecer em qualquer faixa etária. O desempenho cognitivo em adultos idosos varia em função dos fatores próprios ao sujeito (seu nível escolar e intelectual, sua motivação, seus conhecimentos prévios sobre o assunto, sua saúde, sua personalidade etc.), das características do material a ser tratado (sua riqueza, sua estrutura, sua organização, sua dificuldade etc.) e das condições de realização da tarefa (a velocidade e o modo de apresentação, as condições de recuperação etc.) (Van der Linder & Hupert, 1994).

Para avaliarmos nossa memória, é preciso dar, em primeiro lugar crédito a ela e nos observarmos em diferentes situações, procurando identificar o que se passa em nosso mundo interior e nas circunstâncias que nos envolvem, a fim de entendermos melhor este desempenho. Em caso de insucessos mnésicos persistentes, é importante levar em conta a época em que surgiram, o comportamento de sua evolução (variável, estável, ou com piora progressiva) e como vem comprometendo o desenvolvimento de nossas atividades diárias para não nos acomodarmos com perdas e limitações, justificando-as como sendo próprias do envelhecimento, deixando ao acaso o desenrolar de eventos que podem ou não expressar um estado patológico, passível de tratamento e, muitas vezes, reversível.

Mito 5: O indivíduo idoso não é mais capaz de aprender coisas novas.

O aprendizado é possível para os idosos, estando sujeito à influência de fatores comuns ao aprendizado em qualquer idade e de outros, mais característicos deste grupo, associados às mudanças biológicas do envelhecimento. Essas mudanças são expressas na “lentidão no processamento de informações, interferindo na retenção e prontidão de resgate; cansaço precoce em tarefas que exijam a manutenção da concentração por longo período; maior sensibilidade às interferências, facilitando a ocorrência de distração; menor rendimento na execução de tarefas simultâneas; menor eficácia, por menor rapidez, no estabelecimento de novas estratégias de pensamento. Essas alterações modulam a performance do indivíduo sem que isso signifique comprometimento, incapacitação” (Guerreiro & Rodrigues, 1996). Sabemos hoje que o cérebro possui uma enorme plasticidade que permite a contínua incorporação de novos conteúdos ao longo de toda a vida.

Mito 6: Quanto mais memorizamos, mais “gastamos” nossa capacidade. É preciso economizar, memorizando só o que for mais importante.

A prática da memorização favorece o desenvolvimento de habilidades específicas. A realização de tarefas específicas de memorização facilita um melhor desempenho apenas no campo mnêmico correspondente. Por outro lado, o domínio de habilidades de memorização constitui um conhecimento diferencial que amplia direta (ao atuar no sistema, tornando-o mais complexo) e indiretamente (por favorecer o aumento da autoestima, da autoconfiança e do prazer na aquisição de novos conhecimentos) a capacidade de aprendizagem. Desse modo, a preocupação em poupar nossa capacidade de memória não se justifica, sendo importante ressaltar que a utilização equilibrada de nossos recursos cerebrais previne situações de estresse decorrentes de sobrecarga de trabalho, atuando, assim, como fator promotor de saúde mental.

Mito 7: Nossa saúde intelectual no envelhecimento encontra-se na dependência do consumo de complementos vitamínicos e outras drogas que previnam a deterioração do cérebro.

Apesar de inúmeras drogas promissoras estarem sendo pesquisadas para o tratamento de doenças neurodegenerativas, nenhuma até o momento teve comprovada sua real eficácia. Por outro lado, o cuidado com a saúde em geral (estilo de vida saudável, controle da hipertensão e do diabetes, tratamento das dislipidemias, da depressão etc.) contribui de forma importante para a saúde do cérebro.

No tocante ao uso de medicamentos que visem deter ou reverter o processo de envelhecimento, temos a dizer que, em toda a história do homem, nenhum procedimento foi ainda capaz de alcançar essas metas, por mais que tenham sido inúmeras e extravagantes as tentativas. Crenças equivocadas sobre o envelhecimento fazem parte de nossa cultura há milhares de anos e até hoje persistem, muitas vezes maquiadas, como a busca da fonte da juventude, que hoje se expressa no consumo de panaceias modernas. Os “medicamentos para o envelhecimento” ressurgem hoje incorporados de maior valor simbólico, propondo-se proezas que deixariam Fausto, de Goethe, louco de inveja do homem do final do século XX.

 

Cuidados com a Saúde

Um segundo aspecto relevante na promoção de um bom desempenho cognitivo ao longo da vida consiste nos cuidados de saúde, citados anteriormente, que permitem a melhor utilização de nosso patrimônio biológico. Assim, a medicina preventiva assume um papel marcante, atuando na promoção de um estilo de vida saudavel4 e propiciando a prevenção primária, secundária e terciária de doenças e disfunções que, direta e indiretamente, podem trazer prejuízos à cognição. Dentre essas, destacamos, pela sua frequência, os déficits visuais a auditivos e a hipertensão arterial pela sua alta prevalência e morbidade.

O aumento crônico da pressão arterial no curso de vários anos leva a um importante declínio da memória e da inteligência fluida. A hipertensão arterial não tratada adequadamente compromete o aporte de oxigênio para o cérebro e provoca pequenas lesões, frequentemente não percebidas pelo indivíduo, sendo o declínio cognitivo resultante, confundido com as mudanças associadas ao envelhecimento. O acompanhamento dos níveis pressóricos, para a identificação precoce da hipertensão arterial, e o tratamento ajustado a cada caso consistem em importantes medidas para uma boa performance cognitiva no envelhecimento.

Dentro da perspectiva de melhor utilização de nossos recursos biológicos, queremos ressaltar a importância da realização de programas de exercícios cognitivos que tenham um amplo escopo e favoreçam a mobilização de recursos neuronais, a quebra de mitos e o aumento da autoestima, da autoconfiança, do interesse na aquisição de novos conhecimentos, facilitando, assim, a melhoria do desempenho cognitivo e global (Kyriazis, 1995).

 

O Engajamento Social

O engajamento social representa um aspecto diferencial no rumo de uma história de vida. Os sentimentos de utilidade, de identificação com os anseios e valores do grupo familiar e/ou social, de inserção e realização intrapessoal e interpessoal favorecem a vivência de um estado de plenitude e bem-estar que possibilita ao homem um reforço em seu sentido existencial, ajudando-o a perceber seu futuro como uma história em aberto, em construção. Assim, uma ocupação carregada de significação promove a mobilização da mente e do cérebro proporcionando ao homem condições de interagir satisfatoriamente e se adaptar ao meio (Vargas, 1981). Essa dinâmica atua no aperfeiçoamento de nossos recursos internos, tornando o binômio cérebro-mente cada vez mais apto, perspicaz e sutil no curso do tempo, em que pese a ação de fatores restritivos de ordem biológica. O mesmo não podemos dizer sobre as ocupações que tem como objetivo apenas “passar o tempo” ou “distrair”, onde o convite feito ao cérebro-mente determina um distanciamento do sentido de sua existência, trazendo, como consequência, a lentificação dos processos cognitivos, reforçando uma tendência favorável ao declínio.

A acelerada produção de conhecimento e o desenvolvimento tecnológico da atualidade geram rápidas mudanças em nossas vivencias, nas relações sociais e na maneira como lidamos com o nosso universo interior. Estar em sintonia com essas transformações representa um grande desafio e o maior desafio se apresenta para aquele que se encontra fora do mercado de trabalho, numa faixa etária que já não atende mais ao perfil exigido pelo sistema, naquele em quem as mudanças associadas ao envelhecimento são percebidas exclusivamente como perdas e cujo papel familiar e social está sob questionamento. Nessas condições, facilmente caímos na armadilha do envelhecer = morrer, tornando o envelhecimento bem-sucedido uma utopia.

 

O Perfil Psicológico

A forma particular com que cada indivíduo lida com o contexto social, a maneira como sente, interpreta e reage às situações da vida, fala-nos de uma individualidade – desenvolvida continuamente sob a ação de fatores genéticos e epigenéticos – que possui um significativo poder de definição dessa trajetória e pode interceder pelo bem-estar do indivíduo nos momentos de maior vulnerabilidade, levando-o a transcender as circunstâncias e ampliando a dimensão de seus recursos internos para a construção de seu caminho. A concepção que restringe esse poder, essa capacidade, a uma determinação genética e/ou às circunstâncias vigentes nos primeiros anos de vida é infundada, servindo, apenas, de justificativa para a acomodação. Todos nós estamos em constante transformação – nossa interação com o mundo externo e interno propicia um contínuo rearranjo dos conteúdos que armazenamos ao longo da vida. Nossa estrutura de percepção se modifica em sintonia com o nosso viver, e o mesmo acontece com as nossas estratégias de pensamento. Assim, para alguns, as mudanças não existem e, portanto, acontecem involuntariamente; para outros, representam oportunidades oferecidas pela natureza para o contínuo aperfeiçoamento da arte de viver.

A grande variabilidade de atitudes em face das situações de vida e o modo particular com que certos indivíduos encaminham positivamente as suas histórias remetem-nos a reflexão sobre o desenvolvimento da sabedoria no curso da vida. Os pesquisadores que estudam o envelhecimento cognitivo entendem essa capacidade como um modelo de expressão da inteligência pragmática (associada à impregnação sociocultural), capaz de compensar possíveis declínios associados às mudanças biológicas. Apesar de a sabedoria estar relacionada a um maior tempo de vida, a idade por si só não é suficiente para torná-la realidade – isso é um mito. A conquista da sabedoria é uma possibilidade e pode ser entendida como “um sistema de conhecimento especializado, o qual permite uma capacidade excelente de julgamento e aconselhamento envolvendo temas importantes e controvertidos da condição humana” (Baltes, 1994), sendo, por isso, vista como um conhecimento diferencial o rumo ao ideal do envelhecimento bem-sucedido.

Por fim, a manutenção da curiosidade, da alegria interior, do interesse e da paixão pela vida podem contribuir em muito para uma vida plena ao longo de nossa existência.

O envelhecimento bem-sucedido é, portanto, para alguns uma utopia, para outros uma possibilidade e uma realidade, nas palavras de Shakespeare:

Há homens que nunca parecem envelhecer. Sempre mentalmente ativos, sempre prontos para adotar ideias novas; satisfeitos e, contudo, querendo mais; realizados e, contudo, cheios de aspirações, sabem gozar o melhor do que há e ser os primeiros a descobrir o melhor do que há de vir.

Que possamos contribuir para que as palavras de Shakespeare retratem cada vez mais a nossa realidade.

 

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1 Quando utilizamos o termo cognição, referimo-nos aos “processos mentais, relacionados fundamentalmente com o pensamento, mediante os quais o indivíduo adquire conhecimentos, faz planos e soluciona problemas” (Sanvito, 1991).

2 As permanências culturais “envolvem os seres humanos com suas heranças e tradições, de algo quase imóvel que perdura mesmo depois que seus condicionantes iniciais já desapareceram” (Sevalho, 1992).

3 Referimo-nos à inteligência de acordo com o conceito de dupla categorização sugerida por Baltes: a do funcionamento dos processos básicos (mecânica) e a do funcionamento dos sistemas de conhecimento (pragmática). A mecânica cognitiva (comparável à inteligência fluida) é basicamente determinada pela arquitetura neurofisiológica da mente; depende do processo evolutivo da espécie, ao passo que a pragmática cognitiva (comparável a inteligência cristalizada) reflete fundamentalmente o impacto da cultura (Baltes, 1987, apud Van der Linden & Hupet, 1994).

4 Podemos ressaltar a importância dos exercícios físicos regulares, do repouso adequado, de uma alimentação balanceada, rica em fibras e com baixo teor de gorduras saturadas, da presença de atividade intelectual instigadora e de lazer, da ausência de tabagismo, do abuso de álcool e drogas.

 

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Referências bibliográficas

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